O QUADRO DO MUNDO
I
Há
dias em que não posso deixar de olhar, minuciosamente, este quadro, pois me
encanta o seu tema, a sua insuperável beleza e as suas cores harmoniosas,
algumas vivas, outras sombrias; porém, o que sinto não é tanto a fluidez da
arte, antes essa saudade insondável que me leva a um mundo longínquo. Vejo-o e
volto banhado ainda de certa reverência, de um olhar contemplativo, que dá
àquilo um significado único, imanente ao sensível, como se fosse uma fuga –
Dentre os acontecimentos de certo modo intrigantes, que, estranhamente, não sei
explicar, está um menino sendo levado por seu pai para ver o pôr-do-sol daquele
antigo e esquecido mundo. O filho, que contava apenas dez anos, estava
encantado diante da beleza do rio e do fenômeno da luz, jamais presenciara algo
mais belo e singular. Logo percebeu que ali se travava uma luta crepuscular
entre o fogo e a água; vencido, o sol naufragava, deixando a tarde enlutada;
repentinamente, dos escombros, surgiam armações de moinhos de vento, que,
agregadas às pirâmides, brotavam quais formas imaginárias, ainda mais pela
claridade que se dissipava do espaço, banhando de luz o chão das salinas. Esse
entrechocar-se de tempos, de crepúsculos e manhãs, fazia-me compreender que o
mundo envelhece diferente de nós, seres humanos; vivemos a infância num mundo
antigo, a maturidade num mundo em transformação e a velhice num mundo
conturbado, estranho às nossas raízes.
Por isso, quanto mais o observo, mais me convenço de que a arte é tudo
que me resta. Como é espetacular poder ver, com alguma antecedência, as
metamorfoses que movem o mundo de cujo surgimento se faz sentir a experiência,
e ouvir: – Segue teu caminho, viver é inevitável! – Assim, pois, as coisas envelhecem
na memória do que foi, no espaço indivisível da maturação, feito boca faminta
que se cala diante do inevitável; assim, o Quadro do Mundo continua ali,
indiferente às mutações do tempo, içando velas para “mares nunca dantes
navegados”.
II
No
momento que seguiam, ao longo da margem, uma barcaça passava subjugando a
quietude e dispersando o céu vermelho, espelhado no azul das águas – Olha bem,
meu filho, olha bem como o mundo é maravilhoso! – dizia o homem, enquanto
sentava a criança no parapeito do cais. O menino parecia agitar-se, como para
articular alguma palavra, porém, se manteve em silêncio. Talvez, tivesse mesmo
convencido de que pertencia àquele mundo; e, sem nenhum argumento que lhe
servisse de fuga, sem nenhum álibi que lhe fizesse mais livre, continuou a
olhar, impassível, o mundo que um dia estaria nas suas remotas e contidas
lembranças – Essas imagens, que se sucediam no deserto do inconsciente,
desabavam sobre mim, cobriam-me de areia, faziam-me ampulheta – Ah, que cores
harmoniosas! Já vi cores encantadoras, mas essas me fazem emudecer, porque o
que tenho a perguntar não está nas cores, mas no mundo – respondo a mim mesmo,
aparentemente indiferente, mas com certa angustia – Há muito que resolvi
quebrar o espelho, mas ele continua intacto; como essa tela que permanece
branca, embora a tenha pintado tantas vezes; a prova está aqui – finjo
mostrá-la, tocando nos pinceis e nas tintas, tal como os encontrei naquele
mundo, mas desisto – Do lado oposto, o céu declinava na escuridão da noite,
enquanto eu, impávido, navegava nas lembranças de um mundo distante.
José
Saddock de Albuquerque
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