14 de set. de 2011


O QUADRO DO MUNDO


I

                                                                                                                                
Há dias em que não posso deixar de olhar, minuciosamente, este quadro, pois me encanta o seu tema, a sua insuperável beleza e as suas cores harmoniosas, algumas vivas, outras sombrias; porém, o que sinto não é tanto a fluidez da arte, antes essa saudade insondável que me leva a um mundo longínquo. Vejo-o e volto banhado ainda de certa reverência, de um olhar contemplativo, que dá àquilo um significado único, imanente ao sensível, como se fosse uma fuga – Dentre os acontecimentos de certo modo intrigantes, que, estranhamente, não sei explicar, está um menino sendo levado por seu pai para ver o pôr-do-sol daquele antigo e esquecido mundo. O filho, que contava apenas dez anos, estava encantado diante da beleza do rio e do fenômeno da luz, jamais presenciara algo mais belo e singular. Logo percebeu que ali se travava uma luta crepuscular entre o fogo e a água; vencido, o sol naufragava, deixando a tarde enlutada; repentinamente, dos escombros, surgiam armações de moinhos de vento, que, agregadas às pirâmides, brotavam quais formas imaginárias, ainda mais pela claridade que se dissipava do espaço, banhando de luz o chão das salinas. Esse entrechocar-se de tempos, de crepúsculos e manhãs, fazia-me compreender que o mundo envelhece diferente de nós, seres humanos; vivemos a infância num mundo antigo, a maturidade num mundo em transformação e a velhice num mundo conturbado, estranho às nossas raízes.  Por isso, quanto mais o observo, mais me convenço de que a arte é tudo que me resta. Como é espetacular poder ver, com alguma antecedência, as metamorfoses que movem o mundo de cujo surgimento se faz sentir a experiência, e ouvir: – Segue teu caminho, viver é inevitável! – Assim, pois, as coisas envelhecem na memória do que foi, no espaço indivisível da maturação, feito boca faminta que se cala diante do inevitável; assim, o Quadro do Mundo continua ali, indiferente às mutações do tempo, içando velas para “mares nunca dantes navegados”.
  

II



No momento que seguiam, ao longo da margem, uma barcaça passava subjugando a quietude e dispersando o céu vermelho, espelhado no azul das águas – Olha bem, meu filho, olha bem como o mundo é maravilhoso! – dizia o homem, enquanto sentava a criança no parapeito do cais. O menino parecia agitar-se, como para articular alguma palavra, porém, se manteve em silêncio. Talvez, tivesse mesmo convencido de que pertencia àquele mundo; e, sem nenhum argumento que lhe servisse de fuga, sem nenhum álibi que lhe fizesse mais livre, continuou a olhar, impassível, o mundo que um dia estaria nas suas remotas e contidas lembranças – Essas imagens, que se sucediam no deserto do inconsciente, desabavam sobre mim, cobriam-me de areia, faziam-me ampulheta – Ah, que cores harmoniosas! Já vi cores encantadoras, mas essas me fazem emudecer, porque o que tenho a perguntar não está nas cores, mas no mundo – respondo a mim mesmo, aparentemente indiferente, mas com certa angustia – Há muito que resolvi quebrar o espelho, mas ele continua intacto; como essa tela que permanece branca, embora a tenha pintado tantas vezes; a prova está aqui – finjo mostrá-la, tocando nos pinceis e nas tintas, tal como os encontrei naquele mundo, mas desisto – Do lado oposto, o céu declinava na escuridão da noite, enquanto eu, impávido, navegava nas lembranças de um mundo distante.
                                                         José Saddock de Albuquerque