1 de out. de 2011


AS PELEJAS DE JOÃO ROLADEIRA


            Imagine: um imenso campo arenoso, de onde se podia ver, de cima a baixo, todas as casas de uma rua, além de um trapiche de madeira, uns dez a quinze metros, rio adentro, com embarcações atracando toda hora, trazendo água potável, “água de beber”, de outras praias distantes... e assim se formam imagens; não repentinamente, mas após um breve instante em que se dividem entre tempos, passados e presentes, numa dicotomia que se revela na memória como uma fotografia inexistente, mas que continua a existir nos labirintos da cognição; então, diria, que essas imagens que guardo nas lembranças, são, agora,  lembranças suas.
            A cidade tinha cerca de dez mil habitantes, e, apesar de ser uma grande produtora de sal, ainda assim, quer pelo atraso da época ou não, não possuía uma rede de distribuição canalizada, de tal forma que a água chegava às casas, não por um sistema de condutores, mas através de homens, mulheres e adolescentes, que a transportavam em latas de 20 litros – latas de querosene reutilizáveis, presas por cordas de agave a um bastão, que nominavam de calão –, conduzindo água potável.
            Diante daquele reduzido cais, chegavam pequenas embarcações à vela, conhecidas na região por botes, ou melhor, “botes d’água”, formando longa fila de carregadores...
            Imagine novamente: essa longa fila, feita por homens, mulheres e adolescentes, aguardando, ansiosos, a chegada do “bote d’água”, num falatório que se assemelhava à praça central aos domingos ou feriados... e assim, alguém na fila, indolentemente, como se não estivesse ali, cutucasse o traseiro de quem estava a sua frente, assim, deixe-me explicar: desse-lhe, como se dizia na cidade, uma “dedada no boga” – Imaginou! –, pois é, aquilo gerava uma briga sem fim, latas e calões voavam pelos ares, socos, ponta pés; depois, tudo se acalmava, e a paz voltava a reinar; não sem antes expulsarem o desafeto, que, macambúzio, saía desmoralizado e quase linchado.   
            A água trazida nos calões era depositada nas cisternas, potes, ou toneis, estes com capacidade para 200 litros, e conservada para beber e aos gastos gerais, cuja economia se fazia necessária, não só pela precariedade do sistema de abastecimento, como pela escassez, pois nos anos de seca a sua quantidade diminuía consideravelmente, deixando a população, geralmente, em pânico...
            Num desses anos de seca, um “botador d’água”, como também era chamado, o carregador, chegou com uma inovação, a “pipa d’água” ou “roladeira”, que além de ser móvel e exigir menor esforço, transportava cerca de 100 a 140 litros; salvando, assim, a população que, em reconhecimento, o elegeu, no ano seguinte, Vereador, fazendo-o entrar para a história como o primeiro homem a sanar, embora relativamente, o grande desafio no abastecimento da água pública, naquela cidade.
            Mal assumira, logo começaram as manifestações contra João Roladeira; a direita mais empedernida, representada pelos políticos conservadores, que não aceitavam um trabalhador no poder, acusava-o de comunista, alegando que o nobre Vereador distribuía água de graça para os pobres...
            Dias difíceis chegavam, e o assunto virava matéria de primeira pagina no Jornal  “O Estímulo”, primeiro tablóide da cidade, mas o camarada Vereador, como já era conhecido, defendia-se das acusações, impetuosamente, embora – como católico fervoroso que era –, sentisse uma profunda angustia; não só por causa da luta, mas, principalmente, pelo sermão do Padre, que além de seu confessor, dizia-lhe, todos os santos dias – Comunismo é coisa de satanás!
            Atormentado, João Roladeira mandou chamar um talentoso menino que além ser conhecido na cidade pelo trato com as letras, por coincidência costumeira, era seu afilhado de fogueira, a despeito de o mesmo não o reconhecer como padrinho.
            – Quero que me faças uma carta, disse o Vereador.
            – Sim, mas a quem?!
            – Ao Papa...
            – Ao Papa!
            – Diga-lhe que não sou comunista.
            O menino sentou-se e pôs-se a escrever:
            “Caríssimo Santo Padre. É verdade que estão chamando João Roladeira de Comunista porque todos os domingos, ao nascer do dia, o mesmo se comunga aos pés da Virgem Santíssima. Ele, Santo Padre, nem pensa mais em salvar o povo, mas a si mesmo. Perdoe esse pobre “papa hóstia”, pois ele não sabe o que faz; aceitou esse cargo de Vereador, sem medir o tamanho da cruz. Como homem agradecido e temente que é, ajoelhado ao pingo do meio-dia, faz essa promessa a Deus, de enviar a Vossa Santidade um litro da mais pura e santa água, daqui; a água da “Fonte de Do Céu”, mais conhecida pelo nome de “ Cacimba de Maria Xibiu de Ouro”.
            Analfabeto, João Roladeira tomou da mão do menino a carta e a envelopou, sem, sequer, ouvir com atenção sua leitura; com o mesmo ímpeto, foi, às carreiras, enviá-la ao Papa, além de uma cópia ao Padre local, conclusão: Não foi reeleito, nem entrou mais na igreja...
  

14 de set. de 2011


O QUADRO DO MUNDO


I

                                                                                                                                
Há dias em que não posso deixar de olhar, minuciosamente, este quadro, pois me encanta o seu tema, a sua insuperável beleza e as suas cores harmoniosas, algumas vivas, outras sombrias; porém, o que sinto não é tanto a fluidez da arte, antes essa saudade insondável que me leva a um mundo longínquo. Vejo-o e volto banhado ainda de certa reverência, de um olhar contemplativo, que dá àquilo um significado único, imanente ao sensível, como se fosse uma fuga – Dentre os acontecimentos de certo modo intrigantes, que, estranhamente, não sei explicar, está um menino sendo levado por seu pai para ver o pôr-do-sol daquele antigo e esquecido mundo. O filho, que contava apenas dez anos, estava encantado diante da beleza do rio e do fenômeno da luz, jamais presenciara algo mais belo e singular. Logo percebeu que ali se travava uma luta crepuscular entre o fogo e a água; vencido, o sol naufragava, deixando a tarde enlutada; repentinamente, dos escombros, surgiam armações de moinhos de vento, que, agregadas às pirâmides, brotavam quais formas imaginárias, ainda mais pela claridade que se dissipava do espaço, banhando de luz o chão das salinas. Esse entrechocar-se de tempos, de crepúsculos e manhãs, fazia-me compreender que o mundo envelhece diferente de nós, seres humanos; vivemos a infância num mundo antigo, a maturidade num mundo em transformação e a velhice num mundo conturbado, estranho às nossas raízes.  Por isso, quanto mais o observo, mais me convenço de que a arte é tudo que me resta. Como é espetacular poder ver, com alguma antecedência, as metamorfoses que movem o mundo de cujo surgimento se faz sentir a experiência, e ouvir: – Segue teu caminho, viver é inevitável! – Assim, pois, as coisas envelhecem na memória do que foi, no espaço indivisível da maturação, feito boca faminta que se cala diante do inevitável; assim, o Quadro do Mundo continua ali, indiferente às mutações do tempo, içando velas para “mares nunca dantes navegados”.
  

II



No momento que seguiam, ao longo da margem, uma barcaça passava subjugando a quietude e dispersando o céu vermelho, espelhado no azul das águas – Olha bem, meu filho, olha bem como o mundo é maravilhoso! – dizia o homem, enquanto sentava a criança no parapeito do cais. O menino parecia agitar-se, como para articular alguma palavra, porém, se manteve em silêncio. Talvez, tivesse mesmo convencido de que pertencia àquele mundo; e, sem nenhum argumento que lhe servisse de fuga, sem nenhum álibi que lhe fizesse mais livre, continuou a olhar, impassível, o mundo que um dia estaria nas suas remotas e contidas lembranças – Essas imagens, que se sucediam no deserto do inconsciente, desabavam sobre mim, cobriam-me de areia, faziam-me ampulheta – Ah, que cores harmoniosas! Já vi cores encantadoras, mas essas me fazem emudecer, porque o que tenho a perguntar não está nas cores, mas no mundo – respondo a mim mesmo, aparentemente indiferente, mas com certa angustia – Há muito que resolvi quebrar o espelho, mas ele continua intacto; como essa tela que permanece branca, embora a tenha pintado tantas vezes; a prova está aqui – finjo mostrá-la, tocando nos pinceis e nas tintas, tal como os encontrei naquele mundo, mas desisto – Do lado oposto, o céu declinava na escuridão da noite, enquanto eu, impávido, navegava nas lembranças de um mundo distante.
                                                         José Saddock de Albuquerque         

20 de jul. de 2011

Apenas para ler...





Na dúvida que não sei,
            Encontro a estranha ausência das coisas.
            Depois,
            Como quem nunca partiu,
Retorno a permanência dos dias

(Penetro intimamente nesse espaço
E entre espelhos me estilhaço).

Inesperadamente,
Em delírios, as lembranças revoam
Protegidas da memória desbotada.

            Antes,
Esse olhar indescritível para o nada
            Naquele rosto quase esquecido...



5 de jul. de 2011

Introspecção




Confundi-me com o mar...
            Não havia cais
                 nem horizonte,
            apenas o vento           
                 e a leve impressão
            de que navegava em mim mesmo.


13 de jan. de 2011

POESIA NÃO É POESIA


                                                                                   A João Cabral de Melo Neto




    poesia não é dor
    como dizia Pessoa
                é faca e mineral
    como dizia Cabral

                não é flor, somente flor
                mas também fezes
                atiradas que sejam
                de um canhão
                                                              
                é aguardente
                na goela do sujeito
                que desce queimando
                sem reclamar do jeito

                é madeira
                é aço,
                ferro
                cobre
                alumínio 
                ou plástico
                que se encontra
                em qualquer copo
                ou na mesa de qualquer bar


                por isso,
                quando quero poetizar
                ponho alguns trocados no bolso
    e encho a cara de poesia

    bebo até topar!
    depois urino nas paredes
    que me seguram no mundo