AS PELEJAS DE JOÃO ROLADEIRA
Imagine: um imenso campo arenoso, de onde se podia ver,
de cima a baixo, todas as casas de uma rua, além de um trapiche de madeira, uns
dez a quinze metros, rio adentro, com embarcações atracando toda hora, trazendo
água potável, “água de beber”, de outras praias distantes... e assim se formam
imagens; não repentinamente, mas após um breve instante em que se dividem entre
tempos, passados e presentes, numa dicotomia que se revela na memória como uma
fotografia inexistente, mas que continua a existir nos labirintos da cognição;
então, diria, que essas imagens que guardo nas lembranças, são, agora, lembranças suas.
A cidade tinha cerca de dez mil habitantes, e, apesar de
ser uma grande produtora de sal, ainda assim, quer pelo atraso da época ou não,
não possuía uma rede de distribuição canalizada, de tal forma que a água
chegava às casas, não por um sistema de condutores, mas através de homens,
mulheres e adolescentes, que a transportavam em latas de 20 litros – latas de
querosene reutilizáveis, presas por cordas de agave a um bastão, que nominavam
de calão –, conduzindo água potável.
Diante daquele reduzido cais, chegavam pequenas
embarcações à vela, conhecidas na região por botes, ou melhor, “botes d’água”,
formando longa fila de carregadores...
Imagine novamente: essa longa fila, feita por homens,
mulheres e adolescentes, aguardando, ansiosos, a chegada do “bote d’água”, num
falatório que se assemelhava à praça central aos domingos ou feriados... e
assim, alguém na fila, indolentemente, como se não estivesse ali, cutucasse o
traseiro de quem estava a sua frente, assim, deixe-me explicar: desse-lhe, como
se dizia na cidade, uma “dedada no boga” – Imaginou! –, pois é, aquilo gerava
uma briga sem fim, latas e calões voavam pelos ares, socos, ponta pés; depois,
tudo se acalmava, e a paz voltava a reinar; não sem antes expulsarem o
desafeto, que, macambúzio, saía desmoralizado e quase linchado.
A água trazida nos calões era depositada nas cisternas,
potes, ou toneis, estes com capacidade para 200 litros, e conservada para beber
e aos gastos gerais, cuja economia se fazia necessária, não só pela
precariedade do sistema de abastecimento, como pela escassez, pois nos anos de
seca a sua quantidade diminuía consideravelmente, deixando a população,
geralmente, em pânico...
Num desses anos de seca, um “botador
d’água”, como também era chamado, o carregador, chegou com uma inovação, a
“pipa d’água” ou “roladeira”, que além de ser móvel e exigir menor esforço,
transportava cerca de 100 a 140 litros; salvando, assim, a população que, em
reconhecimento, o elegeu, no ano seguinte, Vereador, fazendo-o entrar para a
história como o primeiro homem a sanar, embora relativamente, o grande desafio
no abastecimento da água pública, naquela cidade.
Mal assumira, logo começaram as manifestações contra João
Roladeira; a direita mais empedernida, representada pelos políticos
conservadores, que não aceitavam um trabalhador no poder, acusava-o de comunista,
alegando que o nobre Vereador distribuía água de graça para os pobres...
Dias difíceis chegavam, e o assunto virava matéria de
primeira pagina no Jornal “O Estímulo”,
primeiro tablóide da cidade, mas o camarada Vereador, como já era conhecido,
defendia-se das acusações, impetuosamente, embora – como católico fervoroso que
era –, sentisse uma profunda angustia; não só por causa da luta, mas,
principalmente, pelo sermão do Padre, que além de seu confessor, dizia-lhe,
todos os santos dias – Comunismo é coisa de satanás!
Atormentado, João Roladeira mandou chamar um talentoso
menino que além ser conhecido na cidade pelo trato com as letras, por
coincidência costumeira, era seu afilhado de fogueira, a despeito de o mesmo
não o reconhecer como padrinho.
– Quero que me faças uma carta, disse o Vereador.
– Sim, mas a quem?!
– Ao Papa...
– Ao Papa!
– Diga-lhe que não sou comunista.
O menino sentou-se e pôs-se a escrever:
“Caríssimo Santo
Padre. É verdade que estão chamando João Roladeira de Comunista porque todos os
domingos, ao nascer do dia, o mesmo se comunga aos pés da Virgem Santíssima.
Ele, Santo Padre, nem pensa mais em salvar o povo, mas a si mesmo. Perdoe esse
pobre “papa hóstia”, pois ele não sabe o que faz; aceitou esse cargo de
Vereador, sem medir o tamanho da cruz. Como homem agradecido e temente que é,
ajoelhado ao pingo do meio-dia, faz essa promessa a Deus, de enviar a Vossa
Santidade um litro da mais pura e santa água, daqui; a água da “Fonte de Do
Céu”, mais conhecida pelo nome de “ Cacimba de Maria Xibiu de Ouro”.
Analfabeto, João Roladeira tomou da mão do menino a carta
e a envelopou, sem, sequer, ouvir com atenção sua leitura; com o mesmo ímpeto,
foi, às carreiras, enviá-la ao Papa, além de uma cópia ao Padre local,
conclusão: Não foi reeleito, nem entrou mais na igreja...